Edição #42 - Livre para Voar
A edição de hoje está diferente e especial. Não temos os textos tradicionais da newsletter, mas trago duas novas histórias.
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#01 - Livre para Voar - A História da Chef Pietra Freitas
Foi aos 10 anos, no doc-ficção 'Liberdade, Passarinhos', que Pietra, correndo de braços abertos pelo quintal de casa, disse: “Sou livre para voar, livre como um passarinho.”
Aqui, conto um pouco da história da chef e ativista Pietra Freitas — preta, nordestina, filha de Oxum e, como ela mesma se apresenta: a primeira chef trans do Maranhão.
Nossos caminhos se cruzaram no dia 8 de outubro, quando um vi um story no perfil do Pepo Café, lugar que frequento, onde mostrava um compartilhamento de Pietra. Sem pensar muito, mandei uma mensagem expressando que tinha interesse em conhecê-la. Para minha surpresa, ela respondeu quase que de imediato, muito atenciosa. Nos encontramos no dia seguinte no Pepo. Pietra estava no Rio de Janeiro pela primeira vez, participando de um curso realizado pelo chef Douglas Almeida, do próprio café.
Ouvi sua história enquanto o cheiro inebriante de café, croissants e outros pães recém-assados preenchia o ambiente, e pessoas ao nosso redor compartilhavam memórias gustativas.
Pietra Luzia Freitas, nascida em 15 de fevereiro de 1998, é natural de São João Batista, interior do Maranhão. Vem de uma família de fé, que não nega sua história, e sempre cultuou sua ancestralidade através do Tambor de Mina, de São Benedito e de seus Orixás. Hoje, aos 26 anos, ela trabalha no Banco de Alimentos, um projeto do Governo do Maranhão através da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedes), que combate a fome e o desperdício de alimentos. Além disso, Pietra também atua como personal chef e professora do Programa “Formando e Cozinhando”, uma iniciativa de qualificação para profissionais da cozinha, também da Sedes. Curiosamente, já na primeira série, quando lhe perguntaram o que queria ser quando crescer, Pietra respondeu sem hesitar: cozinheira e professora.
Foi na cozinha de sua avó, Iraci Freitas, que ela descobriu seu amor pela comida, especialmente pelo peixe frito com farinha d’água que costumava preparar e lembra com muito carinho: a crosta de gordura, a pele, a farinha queimada, acompanhado sempre de angu. Depois foi Pietra que passou a cozinhar para a avó, principalmente a carne de porco a vinagreira, um dos pratos favoritos dela.
Pietra enxerga sua caminhada até aqui como um “trabalho de formiguinha”. Foi aos 18 anos, quando se mudou para São Luís para cursar Serviço Social, e precisou interromper por questões financeiras, que deu seus primeiros passos na gastronomia. De chapeira em uma lanchonete a auxiliar de confeitaria e padaria, Pietra só começou a ganhar mais espaço, experiência e responsabilidade quando entrou no Café do Forte. Foi lá que conheceu o chef Wagner Velasco, figura importante em sua vida, que a convidou para trabalhar em seu restaurante de culinária contemporânea, abrindo seus horizontes para novos sabores, ingredientes e técnicas.
Enquanto equilibrava o estágio no restaurante de manhã com o trabalho no café à tarde, Pietra seguiu na busca de mais oportunidades, se oferecendo para trabalhar, mesmo sem remuneração, para ganhar conhecimento e prática. Participou de um concurso local, onde conheceu alguns chefs que a levaram à Ana Gabriela Borges, Secretária Adjunta de Elaboração de Projetos Especiais da Sedes, e à chef e pesquisadora paulista Aline Guedes, especializada em culinária Quilombola. Esse encontro despertou ainda mais sua curiosidade sobre a capital gastronômica, São Paulo. Ela precisava conhecer. Foi então que, pela primeira vez, saiu do Maranhão e visitou a cidade, onde teve a oportunidade de conhecer a chef Bel Coelho, do Cuia Café e Restaurante.
“Fiquei pensando de onde saí e como consegui chegar nesse espaço.”
Após essa viagem, ao retornar a São Luís, um novo capítulo de sua história começou. A chef passava por seu processo de transição, pois até o momento vivia como um homem gay e, embora tivesse se encontrado na gastronomia, se sentia desconfortável em seu corpo, o que gerava um grande conflito interno. Assim nasceu, de forma definitiva, a Pietra – um processo difícil, doloroso, mas que ela descreve como uma realização pessoal.
Em paralelo, pediu demissão do café, pois entendeu que não teria mais possibilidade de crescimento. De repente, se viu desempregada e excluída pelos próprios colegas de profissão. Em meio a esse desafio, recebeu um convite através da chef Bel Coelho para participar de um evento beneficente em SP, no restaurante Eataly, em prol da ONG Casa Chama, que atua em diversas frentes para apoio a pessoas trans. Ao lado de Bel, Rodrigo Oliveira (Mocotó e Balaio IMS) e José Barattino, Pietra compôs o menu do jantar em cinco etapas, com um prato regional: chips de tapioca com cuxá, uma folha de vinagreira, que conhecemos como hibisco.
“Eu acho que é tudo no tempo certo, né?”
Durante nossa conversa, Pietra contou que um dos pratos que mais gosta de preparar é o arroz de carneiro, um símbolo pessoal de gratidão. Quando começou a construir sua casa, o Secretário também a contratava como personal chef para preparar especificamente esse prato.
“Esse arroz pagou meu tijolo, meu pedreiro, pagou muita coisa. Significa muito para mim.”
Apesar de todas as adversidades, limitações e preconceito, é a paixão que impulsiona a Chef Pietra, que vive e respira gastronomia. Ela se dedica completamente à cozinha, sempre em busca de novos conhecimentos, tanto para si quanto para compartilhar com os outros. Quer aproveitar ao máximo o que a gastronomia tem a oferecer. Para Pietra, a cozinha é uma ferramenta de transformação social, e seu maior sonho é ajudar outras pessoas por meio da comida, criando uma escola voltada para pessoas trans e sua comunidade. Ainda vivendo em uma comunidade carente, Pietra pretende começar pelos seus, usando a própria experiência e transformação através da comida como exemplo para poder promover conscientização e mudanças na vida de outras pessoas.
“Quando a gente vai para o interior do Maranhão, o que mais surpreende é o respeito e o carinho. É surreal ver o quanto essas mulheres conseguem entender e respeitar. Elas conseguem me abraçar. É afeto. Comida tem esse poder de promover essa reunião em torno de uma mesa. Como tive poucas vivências de uma família tradicional, consigo de certa forma viver isso através da mesa de outras pessoas.”
Ao perguntar como gostaria de ser lembrada, Pietra respondeu:
“Como uma pessoa que conseguiu superar as maiores dificuldades. A gastronomia é a minha ferramenta de voo.”
Que linda e forte é a história de Pietra! Que bom poder conhecê-la.
Gostei muito de conhecer essa história e lhe dou os parabéns por ir atrás dela.