Edição #40 - Do esquecimento ao pertencimento
Você conhece a história da sua família? Sabe a história dos seus avós, tios-avós, bisavós, primos de terceiro grau? O quanto sabe a respeito deles, e o quanto isso te interessa?
Há algum tempo venho pensando nas histórias da minha família, que é enorme, confusa, cheia de detalhes e plot twists, cruzando até com histórias impensáveis, como a da Marie Curie. Sim, a Marie Curie. Vou tentar explicar rapidamente essa parte porque acho muito curioso.
No início do século XX, havia poucas minas de urânio, e a produção de rádio era escassa. Por conta da demanda do Instituto do Rádio em Paris (criado pela Marie Curie e posteriormente conhecido como Instituto Curie), e dos centros de oncologia que abriram no mundo todo, houve uma corrida pela extração de minério de urânio e produção de rádio. Nessa época, o rádio era produzido somente na Europa. O minério era extraído de minas da cidade Joachimsthal (hoje parte da Tchéquia), e o fornecimento de rádio para o Instituto e outros hospitais era feito por três países: Alemanha, França e Portugal. Na segunda década do século, a produção se tornou insuficiente, o que levou à expansão para outros países, mas isso já é outra história. A primeira exploração de minério em Portugal foi em 1908, na região de Rosmaneira. Depois, seguiram em outras áreas, mas o processamento do minério foi nas instalações da Fábrica dos Sais de Rádio, localizada na aldeia do Barracão, próximo à Guarda. Eis que, meu trisavô, José Silva, construtor, foi o responsável por construir a Fábrica dos Sais de Rádio e, também, um casarão que ficou conhecido como Barracão. Ele, minha trisavó, Maria Augusta, e seus 9 filhos (sete mulheres e dois homens) moraram nesse casarão. Uma das 7 filhas é a minha bisavó, Patrocínia, mãe da minha avó, Maria Elisa, que é mãe da minha mãe, Tereza. Ufa!
Tenho pensado muito sobre como não quero que essa memória se perca. Quero saber contar a história daqueles que vieram antes e como chegamos aqui. Se tenho pessoas na família que detêm essas informações e que sabem contá-las, sinto que preciso aproveitar. Antigamente, as pessoas passavam suas histórias de geração para geração, mas acho que isso foi se perdendo. Observo que várias pessoas da minha própria família não fazem ideia de quem sejam seus primos de segundo grau, quanto mais seus bisavós. Sendo assim, pensei em reunir algumas pessoas, dentre elas, minha mãe e um primo querido - duas pessoas com uma memória surreal, e bons contadores de história.
Recentemente pedi à minha mãe que escrevesse, mas ela sempre desconversou dizendo: “Um dia eu faço”. Já eu, vinha respondendo que não sabemos o dia de amanhã e, por isso, precisava que o registro fosse feito logo. Acho que o argumento funcionou, pois Tereza começou a escrever. Na minha cabeça, as histórias vão se perder, e talvez os laços familiares se percam também. Meu primo deu a ótima ideia de usar um gravador de áudio. Vou registrar algumas conversas e pedir que me contem histórias específicas, assim consigo organizar depois, inclusive fazendo a transcrição de áudio para texto.
Percebi que tenho medo do esquecimento. Acredito que o histórico familiar de pessoas com problemas neurodegenerativos tenha uma influência no medo que sinto. Volta e meia me vejo com medo de esquecer a voz, ou até mesmo o rosto daqueles que se foram. Os rostos, graças aos registros fotográficos, estão salvos, já a voz… Tento me policiar para não esquecer. O mesmo acontece com as receitas de família. Não quero que o sabor se perca. Acho que além do medo do esquecimento, tem algo relacionado a pertencimento, identidade.
Agora surgiram algumas perguntas: Será que terei alguém que guardará a minha história? De que forma venho registrando a minha vida? Isso é relevante, ou não? Eu me importo, ou não? Será um alívio? Como me sinto com a possibilidade de que a minha existência pode ser esquecida assim que eu me for?
Sabe “Coco - A Vida é uma Festa”? Acho que tem uma vibe Coco nisso tudo. Quero levar as histórias comigo, quero manter as pessoas e as memórias vivas, por mais que ache que os laços estejam cada vez mais frágeis e superficiais.
🤏🏼 Petit Viajando : Nunca nos conhecemos #11
Inspirada por uma página que sigo há anos no Instagram, comecei a criar histórias para estranhos que foram fotografados por mim de forma aleatória ou consciente nos últimos 10 anos ou mais. Boas fotos, más fotos. Por que não?
Todos que conhecem Fernanda e Bernardo, em algum momento, se perguntam se eles são apenas amigos. E, quando de fato são perguntados, a resposta é sempre a mesma: apenas amigos mesmo.
Fernanda e Bernardo são apenas amigos, do tipo que os olhos buscam um ao outro sempre que estão no mesmo ambiente. Apenas amigos, que se procuram para contar algo primeiro. Apenas amigos, que sempre se escolhem. Apenas amigos, do tipo que sabem quase tudo a respeito um do outro. Apenas amigos, tão iguais, mesmo sendo tão diferentes. Apenas amigos, que sonham juntos. Apenas amigos, que não veem o tempo passar. Apenas amigos, que se levam a sério e choram de tanto rir. Apenas amigos, que adormecem no sofá. Apenas amigos, que compartilham de um tudo: cicatrizes, camisetas, trechos de livros, músicas, playlists, contas do streaming e pacotes de figurinhas do WhatsApp. Apenas amigos, que se fazem companhia no silêncio. Apenas amigos que ficam achando desculpas para se tocar. Apenas amigos que dançam agarradinho porque é gostoso. Apenas amigos, que só de lembrar, começam a sorrir. Apenas amigos, que se gostam - tanto, mais do que chocolate, café, bebês ou cachorros. E isso é bastante.
Apenas amigos, do tipo que, sempre que bebem, acabam ficando juntos. Apenas amigos, do tipo que desperta vontade de escutar música melosa. Apenas amigos, do tipo que faz o coração balançar.
Foto: Fethiye, 2018.
De Boca no Mundo 🗣️🌎
Novo episódio:
No episódio anterior…
Acha que momentos que são lembrados e que são registrados no celular têm o mesmo sentimento? Eu por exemplo, me recordo com felicidade alguns momentos vividos e quando tenho uma foto consigo me lembrar e sentir a mesma coisa do que vivi naquele dia.
Ana, estou impressionado com o fato de você saber histórias de tantas gerações passadas. E esse "apenas amigos" me lembrou de algumas "apenas amigas" que me arrebentaram o coração. É de brincadeira em brincadeira que a coisa fica séria.